Esperava minha mãe que já está morta, mas não esperava você me ligando. - Diz o provável George, numa voz que não disfarça rancor.
- Sinto muito pela sua mãe, mas é que eu estou com seu gato.
- O Mushu? Por que você está com ele?
- Eu o achei numa casa amarela.
- Você quer dizer a nossa antiga casa amarela?
E, de repente, há um silencio muito grande na linha. Daqueles tipos de silencios que são preenchidos por pensamentos que gritam.
- Eu não sei. - eu respondo, com a voz repleta de culpa, porque eu sei que houve um estrago de uma vida ali.
- É claro que não lembra.
- Eu não lembro mesmo. Nem mesmo que seu nome era George, mas a Dona Rosa - que eu nem mesmo sabia que se chamava assim - me disse.
Outro silencio na linha. Inacreditávelmente, ele volta com uma voz segura, com um sorriso escondido do outro lado da linha:
- Não lembra de nada, nada?
- Nada, nadica.
- Então realmente aconteceu o que você dizia... Como se sente?
- Difícil responder - rio.
- A resposta continua a mesma - ele também ri.
Eu quase pergunto o que aconteceu entre nós. Quase. Mas tenho medo da resposta.
- Venha buscá-lo.
- Vou.
E o espero por pouco mais de 15 minutos, sentada na ponta da calçada, segurando e alisando o Mushu. Enquanto duas folhas brincavam no vento no meio da rua e duas crianças passavam correndo e torcendo os pescoços para ver Mushu, um carro grande e preto vem se aproximando devagar pela direita, até parar a 5 metros de onde estou. O para-brisa está refletindo o sol e eu não vejo George até que ele, depois de uma obvia hesitação, sai do carro. É um cara alto, nem magro nem gordo, cabelo preto espalhado na testa e uma pele queimada pelo sol. Ele vem numa falsa corrida com as mãos nos bolsos, fingindo apreciar as árvores acima de nós, até que se senta ao meu lado, com uma intimidade que eu não acho ruim. Mushu pula e encosta seu pelo na barba dele e é aí que o George diz:
- Quanto tempo.
- É... – Eu rio – Eu não sei.
- É claro que não. Eu estou feliz por você, meu bem. - Mais uma dose de uma intimidade que eu não lembro existir, mas que gosto. - Você vai encontrar aquilo que sempre esteve procurando.
Mushu mia e ficamos os dois o olhando, competindo para ver quem o acaricia mais.
- Encontrarei uma coisa boa?
- Você encontrará o que tiver que ser encontrado. Essa definição de bom ou ruim é muito vaga. Frase sua. – ele ri forte.
Ficamos um bom tempo em silencio, nossos braços encostados um no outro, as mãos se encontrando no corpo de Mushu, olhos distantes e pensamentos confusos. Eu analiso a vida e ele provavelmente está sendo assolado por lembranças que antes dividíamos. Olho para as mãos dele e penso se o que aconteceu comigo não é uma injustiça à todos esses que fizeram parte da minha vida. Apagá-los da minha vida, desconhecê-los.
Sem pensar muito, deito minha cabeça no ombro dele. Eu sinto medo e paz. Vontade e falta dela. Sei e não sei. Coragem e falta de coragem. Penso e não chego a lugar nenhum. E sinto que meu tempo com George vai ser ainda mais curto do que já foi algum dia.
- O mundo está disposto à minha frente e eu não sei por onde começar.
- A gente nunca sabe. – ele passa o braço por meus ombros. – Mas você vai dar um jeito. Você é diferente, meu bem. E é por isso que isso tudo está acontecendo com você. É a sua segunda chance. Eu sei que é. É a chance de você ser e ensinar a ser.
Eu brinco com o pelo de Mushu por poucos segundos e analiso o que ele disse, até que pergunto quase com medo:
- Eu te machuquei?
- Nós nos machucamos. A vida dá dessas.
Eu dou um meio sorriso porque por algum motivo sei que aquela última frase é muito usada por aqueles lábios.
- Mushu sentiu saudade. Eu senti. E pelo jeito vamos sentir mais ainda.
- Eu tenho certeza de que eu senti saudade de você quando sabia de tudo.
- Tenho certeza de que sentiu. E você nunca soube de tudo, meu bem. Frase sua. Mas eu sei que você precisava e queria isso. Só torço para que você não piore seu gosto musical. – ele brinca
- Certeza que o ruim é o seu. – Eu continuo a brincadeira, mas ele já está sério novamente, olhando para longe.
- Eu via fogo em seus olhos, meu bem, e agora eu vejo o desconhecido.
E então eu penso que talvez não seja ruim, mas necessário eu recomeçar. Não só pra mim, mas para George e todos os outros. Facilitar para eles a saída de histórias complexas e doloridas. Dar novos caminhos para mim e para eles, mas meu celular toca e o George enfia a mão no meu bolso e olha a tela, interrompendo meus pensamentos.
- É a Ana te ligando. Estava demorando... Volta pra São Paulo por ali – ele aponta para a esquerda da rua. – Você precisa começar bem.
- Ana?
- Eu vou deixar você se encontrar e entender tudo, meu bem. Mushu e eu estaremos esperando. – Ele atende a ligação e passa o telefone pra mim, com uma mulher na linha soltando “alôs”.
- George? – o chamo.
- Sim?
- Cuida direitinho do Mushu.
Ele sorri e para no meio da rua, com a porta aberta, me olhando. Ficamos um tempo assim, esquecendo de todo o resto. Eu penso que queria entender. Não sei o que ele pensa.
- Vou cuidar.
Eu acredito e atendo a Ana. Ela me chama de amiga e começa a falar muito, mas eu ainda estou focada no carro preto indo embora. Ele hesita novamente. Eu torço para ele ir e ele vai.